Crónica de Jorge C Ferreira | Mais que um café

Jorge C Ferreira

 

Mais que um café
por Jorge C Ferreira

 

Havia um café num Largo de Lisboa que era mais que um café, era uma iniciação à vida. Um Largo que era dominado por Neptuno, o seu enorme tridente e a água da fonte a correr num desatino. Entre a malta do café o deus do mar era carinhosamente tratado por Zé do Garfo. Os eléctricos passavam nesse Largo. O café lá estava iluminado e cheio. Um anúncio luminoso dos antigos tempos. Na cave, um restaurante com um painel assinado na Parede de um bom gosto tremendo. No primeiro andar um salão para banquetes, casamentos, baptizados e outros eventos.

Um lugar de encontro e desencontro. Um tempo de estar e um tempo de esperar. Muitas vezes fazer horas para outras aventuras e desventuras. Gente que estudava, trabalhava, jogava futebol. Gente da noite e do dia. Gente de várias condições. Gente de várias opiniões. Muitas artes ali se misturavam. Muitas ideias se encontravam e se perdiam.

Ali se discutia desde futebol, política, traições, mal de amores a nadas absolutos. Ali parava gente da velha António Arroio, gente de Arroios e gente de muitos outros lados. Ali se planeavam coisas arrojadas e viagens nunca efectuadas. Ali se faziam e desfaziam revoluções. Ali paravam também os bufos da PIDE que, normalmente, eram detectados. Essa gentinha estava em todas as esquinas. Canalhas de um sistema horrendo.

De minha casa ao café não era longe. Por vezes apanhava um táxi. A bandeirada era o que pagava. Nem um impulso mais. Corridas que não agradavam muito aos taxistas. A minha chegada no banco de trás do táxi era triunfal contrastando com a cara do taxista. Assim, por dois escudos e cinquenta centavos, fazia uma festa. Uma festa muito parva. Que tempo!

Dos que por ali paravam já muitos foram embora. Alguns não sofreram o desgosto de ver o fim daquela casa. Devia aqui lembrar os seus nomes, no entanto, com receio de esquecer algum, prefiro deixar um beijo a todos. Beijos de todos para todos como sempre. Beijos das nossas e para as nossas meninas também.

Meus Amigos especiais, não calculam as saudades que eu tenho vossas. Das discussões sem fim, das parvoíces sem nome, dos jogos sem sentido, dos enormes desvarios.

Até antes da pandemia todos os anos nos juntávamos para um jantar. Jantar onde já foi um filho de um grande Amigo desaparecido. Foi um momento estranho. Um tempo comovente. O tentar disfarçar os olhos húmidos. Afinal ele estava de novo, ali, connosco.

Os empregados eram, quase todos, amigos. Usavam farda e gravata e uma paciência enorme para nos aturar. Sem eles não havia nenhuma história para contar sobre aquele café. Eles eram parte essencial daquela vida.

Havia uma cabine telefónica dentro do café. Daí se faziam muitas partidas e também se combinavam muitos encontros. Uma caixa metálica prateada e um disco com os dígitos de 0 a 9. O auscultador negro, enorme, e uma moeda de cinquenta centavos para o primeiro período de conversa.

Durante o dia o Totina vendia os jornais com as novidades amputadas e discutia com o Fernando Assis Pacheco o próximo jogo de futebol entre os ardinas e os jornalistas. O jogo tinha lugar, por norma, no campo do Vitória da Picheleira. Seguia-se uma lauta comezaina bem comida e bem regada. Ali eram todos irmãos.

Tudo era muito diferente. Não existiam telefones móveis, nem tablets, nem computadores pessoais. Havia uma equipa de futebol de salão onde o grande Damas tinha chegado a jogar: Os Neptunos. Equipa que era acompanhada por todos nos seus jogos, em torneios, que se efectuavam um pouco por todo o lado.

Podia estar aqui uma vida a escrever e haveria sempre mais a dizer. Esta é uma história que ficará para sempre incompleta.

Agora chegou a altura:

O Largo chama-se Largo Dona Estefânia e o café Tarantela.

Abraço-vos a todos meus queridos Amigos, os presentes e os ausentes.

«Devias ter uma linda vida, devias! Coitada da tua Avó.”

Fala de Isaurinda.

«Era um tempo. Acho que fiz tudo no tempo certo. A minha Avó era o meu Anjo da guarda.»

Respondo.

«Muito deve ter sofrido essa doce Senhora. Cala-te.»

De novo Isaurinda e vai, as mãos postas.

Jorge C Ferreira Fevereiro/2022(337)


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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20 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Mais que um café”

  1. Jorge C Ferreira

    Obrigado Cecília. Que bom ter-te aqui de novo. A vida que me calhou. Ainda não sei, nunca saberei porque ando por aqui. A tarantela foi um refúgio e uma escola. As saudades que a vida nos traz. Abraço enorme.

  2. Ivone Maria Pessoa Teles

    Querido Jorge, meu Amigo/ Irmão, não havia ainda telemóveis, mas havia uma ” Instituição” melhor, o Café Neptuno. Também aqui em Coimbra havia ( será que ainda há?) um Café Restaurante Neptuno.. Não, não vivi lá as aventuras que viveste no teu!!!!! Mas havia na Praça da República o ” MANDARIM “. Quando saía do Hospital, eu com outra amiga íamos lá encontrarmo-nos com outros amigos/as. Servia para ” bastante” trabalho político. Era um dos lugares onde se trocavam jornais e documentos para distribuirmos em locais específicos. Até a minha ficha da PIDE refere o meu ” mau porte ” que frequentava cafés, cinemas, Livrarias e até, imagina, Cooperativas e outras ” Casas Suspeitas “. Como me orgulho desses tempos. Deste-me o ” mote ” e falei de mim. Como vês, cada um em Km de distância, (e com as outras devidas distâncias ) não somos tão diferentes. Afinal, e salvo também as idades e época, já éramos amigos/ irmãos. Beijinhos

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Ivone, minha Amiga/Irmã. Os cafés eram instituições de uma importância enorme. O que se discutia, planeava e fazia. Escolas do pensanento. Nós sempre fomos Irmãos. Beijinho

  3. Locais carismáticos.
    Um café com História, como se uma via em vez de um café.
    Eu lembro-me de uma outra Tarantela, em Paço de Arcos, que já não existe.
    Um beijo, amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Sofia. Locais vibrantes. Escolas de vida e pensamento. Os jornais. A discussão acesa. O aprender. Beijinhos

  4. Coutinho Eulália Pereira

    Excelente. Como é bom acompanhar esta viagem no tempo. Tantas peripécias. A juventude irreverente, que tão boas memórias traz. Os amigos que vão partindo. Os encontros antes da pandemia, que não voltarão a ser iguais. Tempo interminável este.
    As memórias cada vez mais presentes dos bons e maus momentos.
    Grata, meu amigo, por estas crônicas maravilhosas escritas de forma única.
    Um grande abraço.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Eulália. Tanta coisa seguida, minha Amiga. Os cafés da nossa vida. A aprendizagem. A vida a correr. Um tempo difícil que tentávamos levar alegremente. Abraço grande

  5. Maria Luiza Caetano Caetano

    Mais esta história linda e bem vivida. Num local de encontro entre amigos. “A sua sala de estar.” Umas vezes ficavam, outras partiam para novas descobertas. Nunca deixando de ser o seu lugar preferido. A Tarantela.
    É maravilhoso, ( vou dizer escutar) o que tão bem sempre nos conta. Que memórias boas, lembrar tantos amigos. Conheci bem essa “sala de estar.”
    Foi lá a festa de casamento, de três amigas minhas.
    É tão agradável lembrar a juventude. Apesar da parte negra que se vivia, horríveis homens, que em jeito de espiões tanto mal causavam. Mais tarde foi muito triste, ver o fim da Tarantela, naquele largo tão característico da nossa cidade. Onde sempre atento continua, Neptuno o Deus do mar.
    Muito obrigada, por estes bons momentos de leitura, que nos proporciona, querido escritor.
    De certeza, que a Senhora sua avó, continua a ser o seu Anjo da Guarda. Abraço imenso.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Luiza. Um local onde sabíamos que havia sempre alguém à nossa espera. A conversa qu fluia. A troca de argumentos. Muitas vezes até ser hora de apagar as luzes. O cuidado com quem nos ouvia. Abraço enorme

  6. Filomena Geraldes

    Havia sempre um lugar onde os encontros aconteciam. Naturalmente.
    Não marcávamos horários.
    Não estabelecíamos obrigações.
    Não demarcávamos limites.
    No teu Tarantela, no Largo Dona Estefânia, tudo era possível. Até um Neptuno que com o seu tridente esbanjava cascatas de água corrente…
    Eram possíveis as conversas amigáveis, os debates mais acalorados e toda a espécie de variantes temáticas.
    Os rostos conhecidos, os encontros casuais e os menos esperados.
    Arquitectar uma “caça ao tesouro”, uma saída nocturna ou o convite para uma ida aos gambozinos…
    Os cafés da malta! Da bica. Do cigarrito.
    De catrapiscar a miúda, de trocar um olhar malicioso, de rir, contar anedotas e disparates ou de trocar impressões, de armar aos cucos, de entreter as horas, de explorar sonhos e ideais, de dar lugar a peripécias e a histórias para contar aos vindouros…
    Também eu tive o meu café. O Arabesco, na estrada de Benfica.
    Quantas lembranças desse local onde a amizade nunca ficava à porta.

    O nosso amigo cronista tem andado a pôr à prova a nossa memória. Não sabe tão bem olhar para trás, ter outra vez vinte anos e pensar que éramos quase eternos?
    Um abraço carinhoso, Jorge!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Mena. A Tarantela. Era no feminino que a tratávamos. Uma carinhosa ternura. Nossa festa diária. Nossa conversa nunca acababa, nosso aprender sem fim. A vida. Tão bom ler os teus comentários. Uma outra crónica. Gratidão imensa. Beijinho

  7. Maria cristina Belchior Ferreira

    Uma crónica com a chancela Jorge C Ferreira. Nostálgica, doce, irreverente. Muito bonita, Jorge. Consigo imaginar a emoção de quem conheceu esse café – A famosa Tarantela.
    Sou de outra época, outra cidade, mas ainda cheguei a conhecer e a frequentar.
    As tuas palavras fizeram-me recuar umas boas décadas e trazer memórias do café que também eu frequentava na minha terra. Creio que faz parte cada um de nós ter um café que terá sido uma espécie de “uma iniciação à vida”. O meu chamava-se Colmeia e era em Vila Franca de Xira. Mas entre muitas diferenças à época, eu não dava dores de cabeça à minha avó (sorriso).
    Gostei muito desta crónica de um bom malandro.
    Abraço

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Cristina. Todos tivemos um café a que chamámos nossos. Os encontros e os desencontros. As conversas nunca acabadas. Os namoros que não aconteciam. Abraço grande.

  8. Isabel Maria Torres

    O retrato de uma vivência, num tempo especial e local especial . Também um episódio mais recente. As palavras, sempre belas, tranportam-nos para esses momentos sociais e singulares. Um quê de repulsa (pelas regras socioclturais num regime criminoso) . Um quê de revolta (pelos interditos,,os disfarces,os esconderijos). Um quê de orgulho ( pela luta silenciosa, mas insidiosa,os comportamentos desviantes, as discussões proibidas, as conversas marginais). E muita humanidade, nas entrelinhas, pelos que nada tinham e nadam sabiam. Sobreviviam, sem possibilidade de discussões, sem tempo, sem saber. Também a luta pela rebeldia e firmeza de atitudes-num registo pessoal e colectivo.
    A bonita e visceral amizade que ficou alimentada por um tempo comum vivido em cumplicidade, em esconderijo.
    As memórias que não se esquecem nunca e que marcaram profundamente o cronista. Cicatrizes que relembram sempre essa vivência e de certo contribuiram para a sua singularidade.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Isabel. Que belo comentário. Os lugares de todas as iniciações. A nossa vida a crescer. As discussões, as várias visões do mundo. O mundo na palma das mãos. Abraço

  9. José Luís Outono

    Num repente regresso a esses tempos que por aqui traduzes num apelo de leituras. Tempos de outros tempos, onde o grito de ser livre já se vivia, mas compassadamente não fossem os senhores da António Maria Cardoso acordarem com inquéritos dantescos.
    Tempos, em que um café valia por sonhos e estimulava pensamentos nos encontros bem arquitectados em corridas livres de azimutes amorosos.
    Depois descíamos a rua e os ecos dos ardinas jogavam a informação em gritos típicos – Olhó Diário, traz a Bola !!!
    Grato amigo pelas memórias aqui trazidas, motivadoras de sorrisos e saudades da liberdade sempre codificada, não fosse o espião acordar.
    Grande abraço!

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado José Luís. Que tempos. Que aventuras. A coragem e um pouco de loucura. Aprender os caminhos da vida. Um grande Abraço.

  10. Cecília Vicente

    Quase sempre me vejo a caminhar pelas aventuras e cheiros dessa fortunada vivência que tanto fizeram caminhos e lugares … Que prazer poder contar toda uma vida de aventuras que hoje escreves com um agridoce que a vida te deu, o bom e o mau da vida até com certo humor. O antes e o depois, que privilégio. Obrigada,Jorge, meu muito amigo
    Abraço!

  11. maria roma matos

    Tanta coisa bonita que connosco partilha. Como gostaria de ter participado nesses eventos ou aventura mas, tinha hora marcada para chegar a casa, uma espécie de pide e a minha ida era na hora do almoço. O que eu perdi?!…
    Os meninos de Arroios e do Tarantela eram muito especiais e bonitos. Várias vezes lá passei com as amigas para “lavarmos a vista”. Parvoíces (rsrs) próprias de uma época.
    Ainda hoje lá passo e olho com uma certa nostalgia o Neptuno – deus do mar, bem como o local do Tarantela.
    Retribuo o abraço abraçado, Amigo.

    1. Ferreira Jorge C

      Obrigado Maria Rosa. A Tarantela era uma escola. Uma iniciação à vida. Havia dias que se passavam ali inteiros e que não cansavam. Mas também dali se partia para outras aventuras. Um grande abraço

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